sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Believing in the Absurd - Harold Norse

Enquanto não surge mais nada meu por aqui, deixo as portas e as janelas abertas pros monstros circularem:

Believing in the Absurd

writing a poem
& feeling absurd
about this useless activity
I went to the window
& saw a scraggy nut
beret mothy beard
groucho moustache
grinning
muttering
to himself
staring
at greeting cards
in the window
of the imprimerie
gît-le-coeur
suddenly
in a swift
handwriting on the wall
laughing secretly
& shaking his old head
(lonely weirdo
in priestly garb
ratty & black) he
wrote
& I had to see
& ran downstairs
& read

WE ARE SEARCHING
FOR RATIONAL REASONS
FOR BELIEVING
IN THE ABSURD 

- Harold Norse

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Amigos imaginários - a criatura atrás do espelho

(Esse texto é uma contribuição à série de amigos imaginários retratados por Diana Sandes no blogue Sinfonia Para Homens Bons)

Não  era o meu reflexo. Não era absolutamente o meu reflexo que morava ali atrás do espelho, no banheiro da grande casa de fazenda, de cheiro de tangerina da Vó, de pique esconde com os primos. Mesmo quando eu, criança mais nova da casa, não alcançava ainda a pia, muito menos o espelho, já podia ver suas pequenas mãozinhas bem agarradas à imagem refletida da velha geometria dos azulejos, encimada pelo caos ameaçador das figuras de umidade que se penduravam do teto. Um dia, aproveitei a distração da família, que acompanhava um jogo ou uma guerra qualquer no rádio do escritório, arrastei um dos bancos da cozinha, escalei a pia, e fui expiar quem era essa criaturinha que se prestava a guardar em suas mãos o reflexo do mundo. Me aproximei com cuidado; ainda não ousava encarar o espelho. Tinha medo de encontrar ali, não meu reflexo, mas o rosto dela me encarando de volta. Toquei uma de suas pequenas mãos, fria e metálica, e pensei talvez escutar uma risadinha fanhosa e engraçada, interrompida bruscamente pela chegada de Ina, minha prima mais velha.  Flagrado no que pensava ser um grave delito, resolvi me confessar de pronto: quero saber quem é que mora atrás do espelho. Ina sorriu e, calma como sempre, me levantou no colo e me mostrou: não tá vendo que é você? Não tá vendo que é você e eu? E era. Mas a criaturinha voltou a rir baixinho, como se tentasse conter uma sonora gargalhada, suas pequenas mãozinhas fazendo tremer o espelho. E nossa imagem refletida ali tremeu junto por um instante. Pensei: talvez fosse a guerra que nos alcançava lá fora, fazendo rugir o mundo com seus passos de gigante. Ou mesmo meu tio gordo, castigando as velhas fundações com a comemoração de um gol. A criatura atrás do espelho, no entanto, gargalhava ainda mais alto desses absurdos. Ina me sentou na tampa da privada e olhou novamente para o espelho, ajeitando os cabelos e o sorriso: agora para de besteira e vem comer, que teu pai tá chamando. Pegou o banco da cozinha e saiu, com autoridade de prima mais velha, e sua ordem fez calar até a risada que ecoava dos azulejos, deixando a imagem no espelho tão silenciosa e vazia quanto o banheiro que ele refletia. 

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

6:30


Quando o grito soou seu horror até nós, todos corremos para a praça, e lá no centro, bem no centro, entre os dois pés de boceta e a estátua de São Longuinho, deitava o cachorro morto, bem morto no centro da praça. Seu olho morto, sua língua lambendo o sangue do chão, e era o gosto do próprio sangue que ele sentia. E era o menino morto que deitava ali, e ria-se da própria morte.

Um homem chorava sua morte, a morte do cachorro morto na praça, e era o próprio homem que matara o cachorro. E era a morte do menino que o homem chorava,  do menino que ele matara,  e ele arrastava o menino morto pelas perninhas finas e o deitava na sombra, deitava o cachorro na sombra, e era a mãe do menino que dizia, esse homem não tem Deus no coração, e isso repetiam os jornais das TVs que cercavam a praça, esse homem não tem Deus no coração, e esse era o horror que soava da praça.

O morto, os dois pés de boceta, o São Longuinho, eram uma cruz no meio da praça, a sombra da cruz da igreja da praça, que toava seu sino. E todos voltaram seus olhos para o relógio da igreja. Até o menino voltou seus olhos mortos para o relógio da igreja. E era o cachorro morto que  levantava e olhava para o relógio da igreja, e uivava com o sino da igreja. E o relógio marcava seis e meia, mas seus ponteiros apontavam para o céu.